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Encontro das Águas resiste ao tempo e à falta de proteção ambiental

Fenômeno único, que marca a identidade cultural do Amazonas, não possui gestão para conservação; tombamento pode não dar conta dos novos modos de ocupação local

O Encontro das Águas está localizado ao sul da cidade de Manaus (Foto: Valter Calheiros)
O Encontro das Águas está localizado ao sul da cidade de Manaus (Foto: Valter Calheiros)

Não foram poucas as ameaças sofridas ao longo da história, mas o Encontro das Águas dos rios Negro e Solimões, considerado um dos fenômenos naturais mais emblemáticos da região amazônica, resiste. Localizado ao sul da cidade de Manaus (AM), o atrativo turístico é também um símbolo de valor cultural da capital amazonense. Foi tombado como patrimônio cultural em novembro de 2010. Passados quase 15 anos, o instrumental jurídico que, junto da mobilização da sociedade civil, conseguiu barrar a construção de um porto de navios cargueiros no local, mostra-se insuficiente para as novas dinâmicas de ocupação do espaço em curso.

Desde novembro de 2024, a construção do parque Encontro das Águas – Rosa Almeida, localizado no ponto mais alto dentro do perímetro urbano, em um platô a 60 metros acima do rio, coloca em risco o ordenamento territorial da área e põe em discussão os impactos causados no entorno. A obra não possui Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), indicado apenas para grandes obras, com projetos urbanísticos acima de 100ha. Tampouco tem um planejamento para a nova ocupação do local envolvendo a área de abrangência do Encontro das Águas que inclui outros dois municípios: Careiro da Várzea e Iranduba.

Quem vive e trabalha no local sabe que as ameaças não são poucas. Patrícia Maia de Auzier, 40, pilota embarcações na região do Encontro das Águas há 15 anos. “A gente vê de tudo: já virou algo normal, no meio do rio, ter roubo de gasolina, de diesel das balsas e embarcações saindo do porto da Ceasa. Na pressa, o povo deixa cair na água, que fica contaminada”, afirma. 

A reportagem da Abaré esteve no local e constatou um forte odor de combustível, reflexos de óleo na água e deslizamentos na praia que se forma logo abaixo do barranco. “É comum ter muito óleo derramado na água. Tem gente que limpa o motor e joga tudo dentro da água, além disso tem os roubos de combustível. Aqui não tem fiscalização de nada não”, afirma um ex-pescador, 60, que trabalha na região como barqueiro. 

“Aqui tem muito barriga d’água [piratas]. Agora que o rio está cheio é que eles aparecem mesmo. No fim de ano, que tem muito movimento, também. Conheci várias pessoas que tiveram a lancha levada, inclusive lá pra Coari (a 467 quilômetros de Manaus). Eles levam com tudo. Se tiver passageiro dentro, mandam descer, dentro de água mesmo; se tiver terra é bom, se não…”, conta um barqueiro, 37, que trabalha com transporte de passageiros no local há 11 anos.  

Ele recorda o episódio em que piratas renderam uma lancha no Encontro das Águas. “Empunharam a arma, colocaram os passageiros na beira e foram embora para as bandas do Mauazinho [bairro]. Ali quando tá cheio, é só pular o muro e ir embora”, completa. O bairro é um dos mais populosos da zona leste de Manaus e tem acesso direto ao rio, no entorno do atrativo turístico.   

Sobre a falta de segurança, ambos afirmam que falta a presença de forças de segurança no local. “É difícil ver a polícia por aqui. O motor desse pessoal é de força, ninguém alcança eles, não. Aqui é só Deus pela segurança da gente”, completa o barqueiro de 37 anos. O ex-pescador e o barqueiro pediram para não serem identificados. 

Como mulher, Patrícia toma alguns cuidados com os horários de trabalho e chegou a comprar uma casa em uma comunidade próxima ao Porto da Ceasa, de onde sai para trabalhar, para poder ter onde guardar a embarcação. “Mesmo pagando para outros cuidarem, eles não dão conta. Acabam rendidos”.  

Agravamento da crise

A seca também tem revelado outras preocupações para quem vive e trabalha no entorno do Encontro das Águas. Nas duas últimas estiagens de 2023 e 2024, as mais severas já registradas em 120 anos de medição do Rio Negro - com cotas de 12,70m e 12,11m, respectivamente - barqueiros notaram um aumento da extensão de areia que forma um canal, em frente ao município de Careiro da Várzea, por onde circulam as balsas que fazem a travessia dos carros para a BR-319.  

“O aumento da praia tem quatro anos. Acompanho desde 2019. Ela era pequena mas já alargou e a cada ano que passa, vai querendo fechar o paraná (canal de ligação entre dois rios). Na seca do ano passado, quase que a balsa não passava, já estava topando o fundo dela no canal. Acho que um dia vai fechar”, comenta o ex-pescador de 60 anos que hoje trabalha com a travessia de pessoas. 

A preocupação de quem tira o sustento do dia a dia, das atividades que envolvem o Encontro das Águas, inclui, ainda, outros aspectos. Por conta da relação de troca que possui com o ambiente, Patrícia Auzier procura cuidar do local por meio de ações voluntárias de coleta de lixo, em um trabalho coletivo da cooperativa. Ela teme que, a longo prazo, o fenômeno seja prejudicado também pela ação humana no entorno, o que pode acabar afetando o turismo local. “Se isso aqui acabar, vai todo mundo ficar desempregado. Inclusive eu. De cozinheiro, operador de máquina de convés, todo mundo”, afirma. 

Os deslizamentos de terra no talude – terreno inclinado – onde está sendo construído o Parque Rosa Almeida chamaram a atenção dela durante a visita da reportagem. Ela explicou que, pela cor do barro presente no barranco, o deslocamento havia sido recente. “Do final do ano passado pra cá, as pedras que estavam ali, apareceram no chão. Desbarrancou muito e continuou com as chuvas de agora. Acho que é por conta desta obra. Você sabe o que vai ser ali?”, pergunta à reportagem. 

Deslizamento do barranco onde está sendo construído o Parque Rosa Almeida (Foto: Valter Calheiros)
Deslizamento do barranco onde está sendo construído o Parque Rosa Almeida (Foto: Valter Calheiros)

Ao ser informada que a construção refere-se a um parque municipal, ela recorda da queda de parte do Porto Chibatão, afetado por deslizamentos de terra, que resultou no afundamento de mais de cem contêineres. 

“Acho que não vou querer ir lá, não. Vai ter muitas pessoas andando, crianças. Penso que será perigoso para todos”, espanta-se. A obra está licenciada pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), sem a necessidade de estudos de impacto sobre como será o acesso à praia, utilizada pela comunidade local, por exemplo. 

Atualmente, o acesso está bloqueado por um tapume de alumínio, desde o início das obras. Entretanto, algumas pessoas se arriscam contornando o obstáculo. Em 2021, a Prefeitura de Manaus colocou pneus no trecho de aproximadamente 250 metros para facilitar o acesso e segurar o desbarrancamento, o que mostrou-se sem eficácia já que, em 2022, houve novo deslocamento de terra.   

Uma notícia crime foi feita ao Ministério Público Federal à época, por representantes do movimento SOS Encontro das Águas, mas o procedimento foi arquivado. De acordo com o educador ambiental Valter Calheiros, que acompanha o local a partir de registros fotográficos como membro do SOS Encontro das Águas, vários pneus tombaram para dentro d’água. Em visita ao local, é possível encontrá-los na praia. 

A empresa responsável pelo acompanhamento e proteção dos vestígios arqueológicos do local onde está sendo executada a obra, Muiraquitã Arqueologia. Em entrevista a Abaré, a empresa afirmou que observou o risco de erosão no local onde foram colocados os pneus e levou ao conhecimento do Instituto Municipal de Planejamento Urbano (Implurb). A reportagem entrou em contato com o órgão, mas não obteve resposta. 

Pneus colocados pela Prefeitura de Manaus para impedir deslizamentos no barranco do Parque (Foto: Valter Calheiros)
Pneus colocados pela Prefeitura de Manaus para impedir deslizamentos no barranco do Parque (Foto: Valter Calheiros)

O parque, que leva o nome da mãe do prefeito Davi Almeida (Avante), Rosa Almeida, mistura parte do projeto do arquiteto Oscar Niemeyer, adquirido na gestão do então prefeito Serafim Corrêa (2005-2008) por R$ 600 mil, com adaptações feitas pelo Implurb para uma área de 120 mil metros quadrados (12 ha) sendo 17 mil de área construída que inclui um mirante, museu que deverá abrigar os vestígios arqueológicos encontrados durante a obra e um restaurante, além de espaço com vegetação nativa, segundo a prefeitura. 

O tombamento e os desafios da preservação

Apesar de existir um tombamento registrado, o Encontro das Águas não está assegurado. O processo nº 1.599-T-10, feito pelo  Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), é resultado de uma mobilização histórica da sociedade civil, ambientalistas, ribeirinhos, moradores do bairro Colônia Antônio Aleixo, cientistas e juristas, pesquisadores e sociedade civil organizada. 

O tombamento nunca foi homologado e chegou a ser objeto de questionamento do próprio Governo do Estado do Amazonas em âmbito judicial, feito na ocasião em que a empresa Lajes Logística manifestou interesse na construção de um porto no local, numa defesa questionável de interesses econômicos de interesse privado. Hoje, a empresa alega ter desistido do projeto

O processo encontra-se no Supremo Tribunal Federal (STF) sob análise do ministro Dias Toffoli. A nota técnica emitida pelo Iphan em âmbito nacional dentro da manifestação do processo em curso, evidencia a fragilidade do tombamento o que dificulta, hoje, a proteção do Encontro das Águas em sua integralidade, uma vez que se privilegiou o valor cênico, em detrimento das implicações deste valor na cultura local.   

O arqueólogo Eduardo Góes Neves, que participou como relator do processo de tombamento, questiona a falsa dicotomia colocada para essa questão. “É óbvio que Manaus precisa de um porto melhor, mas será que não tem um outro lugar para isso? O Encontro das Águas é simbólico para o Brasil. É como usar pedreira no Pão de Açúcar, que é um símbolo do nosso país, um lugar que é uma referência de identidade para nós e querer fazer um porto porque alguém tem um terreno no local e interesses a explorar”, explica Neves.

Em sua tese de doutorado, publicada em 2024, o defensor público estadual Fernando Prestes, defendeu a classificação do patrimônio como um hidrossítio. Trata-se de metodologia que permite a valoração dos corpos hídricos como geo patrimônio. Essa classificação equipara o elemento hidrológico com os demais elementos da geodiversidade: geológico e geomorfológico. 

O trabalho propõe investigar qual instrumento jurídico é o mais adequado para proteger um ambiente físico constituído pelo solo, água, ar atmosférico, flora e interações físicas, químicas e biológicas recíprocas entre seres vivos e o meio ambiente. 

“A questão da proteção pelo conjunto cênico, se adequa mais às obras de intervenção humana. No caso do Encontro das Águas, temos vários aspectos ambientais que justificam e asseguram a sua proteção, sem desconsiderar o seu valor cultural”, explica. Esse instrumento está previsto na resolução nº 004/87 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que classifica essas áreas como sítios ecológicos de relevância cultural.

“A preservação mediante tombamento promove o impedimento da construção de portos ou de outros empreendimentos que tragam prejuízos ambientais nesta área, mas não necessariamente garantem uma proteção ambiental”, argumenta. 

No local já existe uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), Daisaku Ikeda, administrada pelo Instituto Soka Amazônia, que protege 52 hectares de área verde em frente ao Encontro das Águas. Registrada no Ibama, ICMBio e no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), a reserva tem a missão de conservar a biodiversidade local e promover educação ambiental.

Reserva administrada pelo Instituto Soka Amazônia que protege mais de 50 hectares de área verde em frente ao Encontro das Águas. (Foto: Valter Calheiros)
Reserva administrada pelo Instituto Soka Amazônia que protege mais de 50 hectares de área verde em frente ao Encontro das Águas. (Foto: Valter Calheiros)

Prestes defende que o Encontro das Águas é um elemento identitário da região, refletindo a relação cultural e histórica dos povos com os rios. Para ele isso se manifesta na história de Ajuricaba, líder Manaó que preferiu a morte à escravidão, e em símbolos como os brasões do Amazonas e da Ufam, o calçamento do Largo de São Sebastião e o nome da TV Encontro das Águas.

“Entendo que esta é uma identidade única, que atrai turistas do mundo todo, mas que estamos trocando pela necessidade de um monumento que tem seu valor, mas que não dialoga com a paisagem. Será que as pessoas querem ver esse tipo de obra arquitetônica ou uma obra da natureza? Por que precisamos dessa obra para validar algo que é único?”, questiona o defensor público e pesquisador.  

Riqueza ancestral

A singularidade da região está representada também pela riqueza ancestral. Em 2023 e 2024 gravuras rupestres milenares submersas no pedral do sítio arqueológico Ponta das Lajes, que remontam há mais de dois mil anos, voltaram a aparecer.  O local chegou a ser recomendado por pesquisadores da Ufam para estudos de paleobiologia, por conta dos fósseis encontrados na região. A paleobiologia é o ramo da ciência que investiga o passado da vida na Terra.

“Ele foi cadastrado como um sítio de valor excepcional e está protegido, além da sua condição de sítio arqueológico, pelo processo de tombamento do Encontro das Águas. Isso só fortalece a importância desse território. Ainda bem que durante o tombamento não foi considerada apenas a extensão dos dois rios, mas a terra no entorno”, afirma a arqueóloga Margareth Cerqueira, uma das responsáveis pelas atividades que atendem ao Programa de Gestão do Patrimônio Arqueológico (PGPA), exigência do Iphan para liberação da da obra, relativa à preservação do patrimônio cultural. 

Cerca de cinco sítios arqueológicos estão presentes na região do Encontro das Águas. (Foto: Valter Calheiros)
Cerca de cinco sítios arqueológicos estão presentes na região do Encontro das Águas. (Foto: Valter Calheiros)

Em 2023, o Iphan, responsável pelo cadastramento do sítio e pelo tombamento do Encontro das Águas, anunciou um plano emergencial para proteger os vestígios, com aumento do patrulhamento da guarda civil, de grupamento ambiental da Polícia Militar e de agentes federais, com o intuito de evitar possíveis danos aos bens arqueológicos durante o período de estiagem.

Durante os trabalhos de resgate do material arqueológico presente no entorno da obra do parque Rosa Almeida, foram encontradas ainda cerâmicas cuja classificação está em fase de confirmação. Elas podem estar associadas à tradição Pocó-Açutuba, que corresponde aos primeiros indícios de antropização do ambiente ao longo da calha do rio Amazonas e está associada à formação de terras pretas de índio, solo rico em material orgânico não natural, resultado da ação humana. 

“A datação do Pocó-Açutuba remonta a cerca de 400 a.C, uma das mais recuadas já encontradas na Amazônia. É provável que ache algo próximo disso, então, estamos em um estado de muita atenção”, explica Cerqueira.

Os vestígios foram encontrados na extensão do sítio arqueológico Daisaku Ikeda, situada dentro da reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) de mesmo nome, vizinha da obra do parque Rosa Almeida. 

Pelo menos cinco sítios arqueológicos já foram identificados na região que abraça o Encontro das Águas. “Trata-se de uma grande ocupação contínua que acabam fatiados para fins de estudo”, afirma Margareth Cerqueira. Os próprios moradores da região sabem disso. “No nosso trabalho de educação patrimonial, envolvendo associação, professores e moradores, todos eles entendem que residem em cima de um grande sítio”, completa. 

Inclusive, dentro do trabalho desenvolvido pela Muiraquitã Arqueologia, consta o pedido dos moradores para que os vestígios encontrados dentro da comunidade, que está em cima do sítio Colônia Antônio Aleixo, mesmo nome do bairro da zona leste de Manaus, sejam também abrigados dentro do museu previsto para exibir os achados arqueológicos dentro da área afetada pela construção do parque Rosa Almeida. Cerqueira afirma que dentro do bairro já foi encontrada urna funerária e, atualmente, existe outra aflorando em frente ao hospital.  

“A arqueologia faz isso: ela serve de fortalecimento da identidade dos territórios tradicionais. Em muitos casos, como o do povo Mura em Autazes, foram os vestígios que ajudaram a provar, juridicamente, que aquele solo era ancestral”, ressalta a arqueóloga. 

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