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Clima e cultura: um encontro necessário para reinventar o futuro

Artistas mostram como a arte enfrenta a crise climática na Amazônia

Criança durante ação do Arte Ocupa, no bairro Petropólis. (Foto: Arquivo Pessoal/ Arte Ocupa)
Criança durante ação do Arte Ocupa, no bairro Petropólis. (Foto: Arquivo Pessoal/ Arte Ocupa)

O encontro entre cultura, arte e clima não é apenas possível, mas também necessário para a construção de futuros. Assim como o passado, o futuro deve ser disputado.

Para falar sobre isso, trago trocas de ideias que tive com três artistas amazonenses: Eliberto Barroncas, músico, poeta, artista plástico, professor e pesquisador, famoso por seu trabalho com a banda Raízes Caboclas; Beto Oliveira, fotógrafo, poeta, documentarista e ativista que, com seu projeto-alter ego “Margem do Rio”, resgata a herança dos povos ancestrais que habitaram e habitam a Amazônia; e Sarah Campelo, artista visual, artivista, articuladora cultural e cofundadora do coletivo Arte Ocupa, que leva oficinas de arte e educação ambiental para as periferias de Manaus. Cada um nasceu em um ponto diferente da região.

Como o fio condutor dessa reportagem é a ponte que liga cultura e clima, ela será entrecortada por algumas canções que, de alguma maneira, estão associadas à discussão. Toda a trilha sonora desta narrativa está disponível em uma playlist no Spotify. Ouça aqui.

“O tempo poetisa o passado”
Eliberto Barroncas, músico e poeta, integrante da banda Raízes Caboclas. (Foto: Arquivo pessoal/ Eliberto Barroncas)
Eliberto Barroncas, músico e poeta, integrante da banda Raízes Caboclas. (Foto: Arquivo pessoal/ Eliberto Barroncas)

Meu primeiro contato com o trabalho de Eliberto aconteceu quando eu ainda era criança. Minha avó, Maria de Fátima, costumava ouvir Raízes Caboclas na nossa casa em Itacoatiara, interior do Amazonas, onde nasci e fui criado.

Eliberto também nasceu na mesma cidade, mas na zona rural de Itacoatiara, com um modo de vida ribeirinho, trabalhando com agricultura e pesca. Na década de 90, ele passou a integrar a banda Raízes Caboclas, no município de Benjamin Constant, localizado na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia.

A banda Raízes Caboclas, fundada na década de 90, no interior do Amazonas, fala sobre as raízes culturais da região amazônica (Foto: Divulgação/Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Amazonas)
A banda Raízes Caboclas, fundada na década de 90, no interior do Amazonas, fala sobre as raízes culturais da região amazônica (Foto: Divulgação/Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Amazonas)

O grupo, conhecido por retratar em suas canções a vivência e a cultura do ser amazônida, mudou-se para Manaus para se apresentar na Eco-92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro.

Foi a primeira vez que líderes mundiais, organizações não governamentais, especialistas e representantes da sociedade civil se reuniram para discutir questões relacionadas ao desenvolvimento sustentável e à preservação ambiental. O objetivo era conciliar o crescimento econômico com a proteção ambiental e promover a cooperação internacional para enfrentar problemas como mudanças climáticas, desmatamento e perda de biodiversidade.

“Foi a primeira grande reunião dos países em torno do assunto. Ela foi muito semelhante aos meus sonhos e às minhas práticas no movimento negro. Estava todo mundo lá, na luta. As decisões tomadas não foram cumpridas, mas os povos indígenas, a partir dali, ganharam mais força”, avalia Eliberto.

O músico reconhece que a violência contra os povos originários continua – invasões, retirada de direitos, genocídio –, mas destaca uma mudança essencial após a conferência: hoje, há mais vozes sendo ouvidas. "Com muita luta, mas tem voz", afirma.

Barroncas lembra que, na Eco-92, lideranças indígenas expuseram ao mundo a negligência dos governantes. "O Brasil passou vergonha", conta. Ele também ressalta que as mobilizações dos movimentos sociais, como aquelas ocorridas na conferência, precisam se transformar em ação contínua. “Nós podemos avançar mais. Cada um fazendo a sua parte, a gente vai se fortalecendo, como um grande paneiro sendo tecido com muitas mãos.”

Quando pergunto a Eliberto o que tem inspirado sua arte e qual a relação dela com o meio ambiente, ele responde que sua criação nasce da necessidade de afirmação existencial. “A consciência ambiental não é só um fazer. É um grito existencial! E minha arte vem das minhas vivências, das minhas memórias, do que vem da espiritualidade, da floresta. Dos referenciais de desigualdade em relação aos povos indígenas.”

 

Versos de Amo - Raízes Caboclas

Eu já nasci cantador É luz que vem de menino Farol de abrir onde eu for As sombras do meu destino

A mão da velha parteira Vi no primeiro segundo Era um barquinho na beira Do mar imenso do mundo

Eliberto Barroncas

 
A terceira margem do rio
Beto Oliveira é fotógrafo e ativista; suas produções mostram mensagens pela defesa do território amazônico (Foto: Tayná Uráz)
Beto Oliveira é fotógrafo e ativista; suas produções mostram mensagens pela defesa do território amazônico (Foto: Tayná Uráz)

Já Beto Oliveira, também conhecido como Margem do Rio, é fotógrafo, poeta, farmacêutico e mestrando em Antropologia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), nascido em Manaus, no Amazonas.

Seus primeiros passos foram dados no quilombo Passagem, situado no município de Monte Alegre, no Pará, para onde se mudou ainda com poucos meses de vida, junto da mãe, que queria estar mais próxima dos pais, moradores do quilombo.

Beto ainda não sabia, mas aquele território lhe semearia sonhos, vivências e saberes. Seus passos foram sonhados por seus antepassados, que mais tarde o despertaram para as formas de vida visíveis e invisíveis do seu território, processo que resultou no seu fazer artístico.

O trabalho fotográfico do artista surge como um contraponto à visão "satélite" que se tem da Amazônia — como afirma a liderança indígena Vanda Witoto, em que a região é vista de cima, mostrando apenas a copa das árvores. Mas, embaixo delas, há pessoas, bichos, sonhos, plantas, amores, espíritos e encantarias.

Populações indígenas durante manifestação em Manaus, no Amazonas. (Foto: Beto Oliveira)
Populações indígenas durante manifestação em Manaus, no Amazonas. (Foto: Beto Oliveira)

Beto me conta que uma pergunta norteia seu trabalho: como é possível enxergar a Amazônia a partir de dentro?

A partir desse questionamento, munido de sua câmera fotográfica, ele lança seu olhar sensível e poético sobre os universos que o cercam, revelando as marginalidades amazônicas para o mundo e alimentando o imaginário de um futuro ancestral.

“Eu entendo que cultura é viver e sobreviver. Enquanto artista da Amazônia, a gente pode falar dos rios contaminados e de como isso pode afastar os Encantados dali. Das práticas de pesca, do relacionamento com os botos e das festas folclóricas que vão deixar de existir quando o rio secar. As mudanças climáticas já começaram a impactar nossos modos de vida, tanto nas cidades quanto nos interiores. E isso inevitavelmente atravessa quem faz arte. Então, o que a gente vai fazer enquanto artistas desse território, que utiliza tanto da energia e da magia daqui para criar e compor?”, reflete Beto.

 

Mapinguari - Boi Bumbá Garantido

Um raio de luz caiu sobre a terra Aviso do Deus do trovão Estrondo terrível que abala a floresta Prenúncio de destruição Surgiu das cavernas um monstro maldito Um bicho enviado por Jurupari Guerreiros armados pintados pra guerra Declaram combate ao Mapinguari

Edvaldo Machado, Inaldo Medeiros, Tony Medeiros

 

Para Oliveira, a arte tem um papel essencial na sensibilização sobre as mudanças climáticas. Ele destaca como festivais culturais, como o Até o Tucupi, realizado em novembro de 2024, em Manaus, criam conexões diretas entre a população e temas urgentes. "É sobre estar em um festival totalmente identificado com a luta contra as mudanças climáticas, fazer a população ver seu artista preferido e ter, talvez, o primeiro contato com a expressão ‘mudança climática’", explica.

Além dos shows, o festival Até o Tucupi expandiu suas atividades para rodas de conversa, oficinas e ações em escolas públicas, demonstrando como arte, cultura e educação podem caminhar juntas. "Aí está a grande materialização de fazer acontecer e falar de clima, usando esses espaços", diz o fotógrafo.

Beto ressalta que a arte também é um instrumento para imaginar e construir futuros possíveis. Segundo ele, esse processo passa, antes de tudo, pela autoestima e valorização da identidade local. "A gente só vai projetar algo no futuro se a gente se gostar, gostar da nossa identidade e se conectar com o território", afirma.

Entre o cinza do concreto e o verde da floresta

Manaus é uma  cidade que matou quase todos os seus igarapés, vendeu sonhos e, logo em seguida, condenou à marginalização, à pobreza, à miséria e à violência aqueles que migraram do interior do Amazonas em busca de uma vida melhor. Esse fluxo se intensificou com a criação da Zona Franca de Manaus, na década de 1960.

Segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística(IBGE), o município é a capital com maior proporção de população vivendo em favelas: 56% de seus mais de 2 milhões de habitantes.

É na favela de Mossoró, no bairro Petrópolis, zona sul de Manaus, que mora e atua a próxima artista entrevistada: Sarah Campelo. Ela é formada em Artes Visuais pela Ufam, além de curadora, arte-educadora, ativista e cofundadora do coletivo Arte Ocupa. Desde 2021, ela transforma o seu território em um verdadeiro ateliê a céu aberto, levando oficinas de arte e meio ambiente para crianças e adolescentes.

Ocupando a periferia com arte, Sarah faz sua revolução, evocando os valores da coletividade e da justiça climática, pintando portais de possibilidades e colorindo o cinza que atravessa a realidade urbana.

Produções artísticas trabalham temas socioambientais para defender e valorizar a cultura amazônica Foto: Divulgação/ Arte Ocupa
Produções artísticas trabalham temas socioambientais para defender e valorizar a cultura amazônica Foto: Divulgação/ Arte Ocupa

Para a arte-educadora, é essencial romper com a ideia da Amazônia como um cenário exclusivamente verde e intocado. "A Amazônia também é cinza, é asfalto, é lixo", afirma.

Segundo ela, é difícil levar essa realidade para fora da região amazônica, porque a imagem que vende é a do rio, da floresta e dos botos – não a das periferias urbanas, com suas gentes e suas contradições.”São exatamente essas pessoas que menos contribuem para esses eventos acontecerem na Terra", explica. Ela mesma já viveu isso de perto. "Fez parte da minha vida acordar de madrugada e ver a casa sendo alagada", conta, ressaltando que, para muitos, além da perda material, há um desgaste emocional profundo.

Mesmo sem acesso a debates técnicos, as comunidades periféricas de Manaus sabem o que está acontecendo com o clima, porque vivem isso diariamente. E é aí que entra o papel do Arte Ocupa: sensibilizar por meio da arte e da educação. Para Campelo, o impacto desse trabalho pode não ser imediato, mas cada ação planta uma semente. "Temos que nos desprender da ideia de que o resultado precisa ser exatamente o que esperamos. Ele pode vir de outra forma."

Mais do que formar novos artistas, seu sonho é que a arte fortaleça a criticidade e a sensibilidade das crianças da periferia. "Estamos vivos, caminhando, criando, construindo. Se ficarmos alimentando esse discurso de fim do mundo, não vamos fazer nada. E o medo é um discurso político. Podemos sentir medo, mas ele não pode nos paralisar."

 

Sociedade do Cão - Casa de Caba

Na entrada dum beco Tinha um gato preto Feito quase inteiro de mistério Na neblina, era flecha fina De um arqueiro guerreiro atirador Como anfitrião, Exu, guardião da porta Como matéria feita daquilo que a mão não toca Foi-se no seu descontente, sentiu-se uma carne No meio do dente de um grande animal Gato de lua crescente olhava No leito profundo do peito daquele animal Uma mensagem trazia Com voz de profecia Que o despertar de uma nova civilização Levaria um fim para a sociedade do cão


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